quarta-feira, 1 de julho de 2020

LETRAMENTO AUDIOVISUAL



O primeiro passo numa caminhada visando a um “letramento audiovisual” é, certamente, assistir a filmes. Lógico, a seguir deve-se analisá-los, ler e estudar sobre eles, pensar sobre o que representaram na época em que foram produzidos, ou depois, nos momentos em que foram exibidos – no seu lançamento comercial, em casa ou na sala de aula.

Imprescindível para todos que pretendam lidar com “narrativas audiovisuais” [1] – pesquisador ou professor – assistir a filmes cria e amplia a cultura, o repertório cinematográfico – ou de narrativas audiovisuais – e também constrói ou aprimora conhecimentos sobre a linguagem audiovisual e suas possibilidades de uso. Assistir filmes frequentemente, não só entra na construção do processo de “letramento audiovisual”[2] - que deve ser compartilhado com os alunos - como deve ser considerada uma das mais estratégicas práticas de aprendizado empírico.

Análogo ao letramento literário, é interessante que o processo siga uma trajetória crescente de “especialização” – no sentido do reconhecimento de elementos característicos da arte cinematográfica. Assim como outras formas de ensino-aprendizagem, o letramento audiovisual consiste em trazer para campo do conhecimento objetivo, das ciências, práticas culturais que são, estritamente falando, habilidades largamente empregadas e característica da espécie humana.[3]   
O processo de “letramento audiovisual” pretende formar “leitores especializados” e consiste, basicamente, de iniciar com a exibição de obras seguidas de análises mais simples, avançando até chegar às mais complexas. A finalidade é fazer com que o analista e/ou o público sejam capazes de alcançar a fruição de obras canônicas – com o cuidado de evitar estabelecer hierarquias, sempre reféns das culturas “dominantes”, em todos os campos.  

Um dos elementos fundamentais desse letramento é aprender sobre a linguagem audiovisual/cinematográfica para ser capaz de analisá-la tema que trataremos adiante. Uma análise sumária das obras audiovisuais que circulam na cultura indica que seus dispositivos não parecem ter limites de criação ou invenção. A sugestão do filme A invenção de Hugo Cabret (SCORSESE, 2011) pretende contribuir para o reconhecimento desse maravilhoso traço na/da sétima arte, sua capacidade ilimitada criar e encantar.

O filme usa o recurso de 3D em um enredo que tem o período da história do cinema como contexto, exibindo, inclusive, sequências cinematográficas de filmes históricos, de maneira dramatizada-performativa. Além da estória do menino contada pela narrativa cinematográfica – muito sensível e humana, Scorsese também apresenta um personagem histórico – Méliès.  O filme ainda exibe algumas das obras de Méliès e representa o que deve ter sido o mundo da sétima arte nas primeiras décadas do século XX, destacando a magia que envolvia a produção cinematográfica na época.

São mostradas algumas das primeiras estratégias de construção de narrativas audiovisuais e algumas das prováveis práticas e invenções do primeiro cinema. Nos são apresentadas também as temáticas abordadas pelos filmes, as formas simples de enredo, montagem e o uso de alguns dispositivos cinematográficos mais básicos. O público pode vislumbrar os sonhos por trás das produções, o caráter amador e experimental dos diversos realizadores. Não seria exagero afirmar que a ideia de “magia” que o cinema significou nas primeiras décadas tona-se menos obscuro para os públicos do filme.   

Reunindo dramatização/performances sobre a vida no cinema das primeiras décadas e sequências cinematográficas históricas sob uma tecnologia de recente e sofisticada, o diretor nos brinda com uma obra de arte do cinema contemporâneo e nos faz testemunhar o quanto a sétima arte é dependente da linguagem.

Viva o cinema, enfim!




[1]A ideia de “narrativas visuais” e como foram engendradas, bem como uma historiografia sobre o tema pode ser encontrada na obra de Burke (BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004: 175-211). Sobre a noção de “narrativas audiovisuais” pode-se consultar, além de Burke, Ferro (FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010) e Abdala Jr (História e narrativas audiovisuais, Ed. Fi, 2020. No prelo) entre muitos outros. 
[2] Talvez fosse mais apropriado falar em letramento cinematográfico ou cinemático, mas, preferi manter assim para não ampliar muito termos e denominações.
[3] O argumento é que a necessidade humana de sobreviver no ambiente hostil das floresta e diante de evidente fragilidade da espécie, desenvolvemos muito a capacidade de “interpretar” os indícios que nossa observação do ambiente, sobretudo visual, podia apreender. A ideia é um desdobramento da reflexão, proposta por Ginzburg para explicar o “paradigma indiciário”, análogo à semiótica médica, empregado por historiadores da arte. (GINZBURG, Carlo. Sinais. In: Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.143-179) 

Um comentário:

  1. Acho o filme A invenção de Hugo Cabret uma ótima oportunidade para conhecer parte da história do cinema, assisti esse filme sem me dar conta de que se tratava da maneira como Méliès, antes mesmo dos irmãos Lumière perceberem a dimensão poética de seu próprio invento, viu nele a possibilidade da magia se concretizar através das imagens editadas e construiu uma fabulosa casa de vidro resolvendo o problema da luz, sem querer dar spoiler rsrs, verei novamente.

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